Resenha literária: Reflexão sobre a moralidade científica em A Ilha do Dr. Moreau.
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Por Janilson Fialho (*)
A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells (1866–1946), é um excelente clássico da ficção científica. Ele influenciou muitos outros livros do mesmo gênero, serviu de base criativa para filmes, e também para outras histórias de autores contemporâneos, por exemplo.O meu primeiro contato com os personagens da Ilha do Dr. Moreau foi na HQ “A Liga Extraordinária”, de Alan Moore.

 O livro de H. G. Wells conta a história em primeira pessoa do náufrago Prendick, que por sorte foi resgatado por um navio que estava seguindo até uma ilha afastada das rotas marítimas. Nessa ilha ele passa a conviver com dois médicos, Montgomery e Moreau, e conhece as criaturas bizarras que habitam por lá, e assim ele tem conhecimento das experiências macabras do cientista.

 O primeiro ponto que observei foi a excentricidade do cientista que contaminou os pensamentos da sua criação com um endeusamento de si mesmo, além de impor uma série de regras de etiqueta, ao que era repetida pelas criaturas com bastante frequência.

 Moreau tenta nos convencer sobre os avanços da ciência para justificar a suas experiências como, por exemplo, enxertos de pele, amputações, a correção do estrabismo, modificações dos hormônios, até usar tecido ou órgãos de animais de diferentes espécies. Isso nos põe em um xeque moral, porque muito dessas alterações e correções de fato já acontece no campo da saúde, é só ver que hoje existe tratamento para queimaduras usando a pele da tilápia ou enxertos usando a pele do porco, e sem contar que houve a tentativa de transplante de um coração de porco para um humano. Em questão de saúde, visando o bem da sociedade, a ciência avançou muito e prolongou mais a vida das pessoas, visto a rapidez para conseguir desenvolver uma vacina contra o Covid-19, e também o tratamento contra o câncer avançou muito.
Saindo da saúde e entrando para a estética, por exemplo, modificar o DNA dos animais quando ainda são embriões, escolhendo a cor do pelo ou dos olhos, e é aqui que eu já começo a enxergar os problemas em querer pré-determinar a aparência de alguém.

 A crítica principal aqui, é essa brincadeira de querer ser Deus por meio da ciência, quando se trata de mudar a natureza animal para humana, não só fisicamente, como também mentalmente. Veja o que Moreau diz nessa passagem: “Muito do que chamamos de educação moral é, na realidade, fruto de uma modificação artificial e perversão instintiva; […] Nesse sentido, por exemplo, a grande diferença entre homens e macacos está na laringe, na incapacidade de estruturar diferentes símbolos sonoros de maneira apurada, o que impossibilita as bases do pensamento.” (Wells, H. G. A ilha do DR. Moreau. Pág. 78, Edi. Principis.)
Aqui está a ingenuidade, ou perversão, desse tipo de cientista, que é pensar que tudo é matéria bruta, e que por isso eles podem manipular a matéria. Esse erro se chama “Reducionismo material”, que significa reduzir o consciente, o vital; ao inferior, o físico-químico. Sendo mais específico, é ignorar a nossa consciência, o nosso raciocínio ou as nossas motivações humanas. Por exemplo, dizer que nossas emoções são consequências de meras descargas elétricas do cérebro é simplesmente ignorar o fator externo, a química é consequência da causa, e não a causa em si.

 A crítica a esses cientistas do reducionismo material é concentrada nessa história no personagem Dr. Moreau, que sente desprezo pela vida, e que pensa poder manipular a dor e o prazer, e aqui ele sente desprezo pela vida animal. Em uma passagem o Dr. Moreau diz: “Tudo o que mais queria era descobrir o limite do extremo da plasticidade em seres vivos.” (Wells, H. G. A ilha do DR. Moreau. Pág. 81, Edi. Principias.). Ou seja, os seres vivos são apenas um monte de partículas em movimento que ele pode os moldar como quiser. Como foi visto na primeira fala de Moreau, que aqui foi colocada mais acima, ele nos compara com macacos, só por causa de uma pequena diferença no DNA, então ele pensa que modificando a estrutura pode transformar uma coisa na outra; e ademais, para dar “raciocínio” a sua criação ele usa a psicologia bizarra de adestramento que é o behaviorismo.

 Isso me lembra até a história (ou paradoxo) do Navio de Teseu, proposto pelo pensador grego Plutarco. O resumo dessa história é: Teseu parte de navio ao longo de uma viagem que dura 50 anos, e nesse tempo ele vai substituindo cada peça do barco conforme se desgasta, até que todas tenham sido trocadas. O que a história do Navio de Teseu propõe é que, a cada tábua trocada fazia-se a pergunta: “Se com essa mudança de tábua ele continuava sendo o mesmo Navio de Teseu?” Aqui está o paradoxo que intrigou e continua intrigando os grandes pensadores do mundo. A mudança de aparência altera o ser ou o ser continua o mesmo independente da mudança externa? Usando o pensamento do Filósofo Parmênides de Eleia, que é: O ser é incapaz de mudar. Com a história do Navio de Teseu e o pensamento de Parmênides, mostro algo contrário a proposta de mudança de Moreau, porque o ser tem que ser o mesmo na passagem do tempo. Portanto, nessa mudança de aparência forçada ele não consegue transformar por completo um ser no outro, pelo contrário, acontece outra coisa, ele cria um ser novo, e agora esta nova criatura está condenada a vagar pela terra com uma mente em conflito sobre o seu verdadeiro ser primordial.

 Então nessa história o termo “monstro” (mas tente desassociar o termo pejorativo dela), que o protagonista usa para designar as criaturas é de certa forma correto, não é nem humano ou animal, é algo novo.

 A indiferença que o protagonista sente por essas criaturas têm uma explicação interessante, porém, ela é originalmente utilizada com outro tipo de criatura, que são os robôs. A explicação se chama “Vale da Estranheza”, é uma hipótese no campo da estética, e como disse, no campo da robótica e computação gráfica que diz que, quando réplicas humanas se comportam de forma muito parecida, mas não idêntica causa um desconforto na gente, e nesse caso, na história, uma criatura animal tentando se parecer um ser humano é extremamente bizarro. Faço até uma comparação com outra obra que questiona essas bizarrices antiéticas da ciência, essas criaturas de Dr. Moreau são iguais ao monstro de Frankenstein, nesse conceito de banalizar e moldar a vida pela ciência, este livro também pode ser uma ótima dica de leitura.

 A Ilha do Dr. Moreau é um livro bastante curtinho, porém, provoca uma longa discussão reflexiva nos leitores sobre a moralidade científica. Há mais coisas a se falar sobre este livro, porém, creio que já me estendi demais. Portanto, fica a dica de leitura.
(*) Janilson é estudante de Filosofia e violonista

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