(Leitura coletiva do cap. XXI até o LXII)

 

Nossa discussão sobre o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, aconteceu mais uma vez no grupo Confraria das Traças, no dia 8 de julho. Desde o dia 24 de junho que estamos lendo do capítulo XXI até o LXII, e devemos dizer que obtivemos ótimos resultados sobre a história.

Bom, faremos um breve resumo para contextualizar o que está se passando na história ao leitor de nossa resenha: Brás Cubas retorna da Europa logo após concluir seus estudos. Deste modo, de volta ao Rio de Janeiro, ele presenciou a morte da mãe, o que o deixou muito abalado. A partir disso, ele vai para uma casa de campo aproveitar um tempo se ocupando de “atividades ociosas”, mas logo o pai surge para ele apresentando — impondo, na verdade — uma proposta que definirá a sua vida: casar e entrar para a política. Assim Brás Cubas, através de um arranjo, conhecerá Virgília. Além do mais, nesse meio tempo antes do casamento, ele reencontra Marcela, e assim os capítulos que lemos até agora se encerram.

Contudo, pretendemos aqui, para além das impressões e juízos de gosto, trabalhar com duas questões: “a melancolia existencial de Brás Cubas” e “as entrelinhas discretas da crítica social”. Nossa leitura chegou a essas duas questões, e isso é ótimo, pois, não nos limitamos a apenas uma delas, ou melhor dizendo, não fizemos apenas uma leitura sociológica ou existencialista da obra. Entretanto, antes de irmos de fato aos temas da discussão, nós faremos uma avaliação estética da leitura.

Impressões

Parece-me não haver uma oscilação no julgamento estético da leitura. Até o presente momento não sinto nenhum cansaço me abater enquanto leio. Aliás, não vejo em minha face nenhum sinal de aborrecimento, pelo contrário, mantenho estampado no rosto um sorriso que expressa uma empolgação inocente de como se essa fosse a primeira vez que estivesse lendo essa obra.

Maria Eduarda, que é a leitora mais ativa de nosso grupo, destaca as seguintes impressões sobre os capítulos: “Minha experiência com o livro tem sido muito boa, no primeiro momento senti uma certa dificuldade para compreender o que o autor estava falando, mas agora sinto que estou acostumada com a escrita dele”.

Dadas as seguintes considerações sobre nossas impressões, passaremos agora a abordar as questões que propomos antes.

A melancolia existencial de Brás Cubas

Machado de Assis alcançou a genialidade nas páginas da literatura ao mergulhar sua pena no mais profundo abismo da alma humana. Nós podemos ver o que acabamos de mencionar claramente em Brás Cubas, isto é, no incômodo que o personagem expressa, desde os pesares da morte da mãe até a falta de propósito do que ser e fazer de si. Tudo isso está impresso nos capítulos XXII (Volta ao Rio), XXIII (Triste, mas curto), XXIV (Curto, mas alegre) e XXV (Na Tijuca). Enxergamos nesses capítulos um certo núcleo que torna tal tema — a melancolia — homogêneo; eles representam uma queda vertiginosa do personagem as sensações negativas da vida. Porém, isso dura até o capítulo XXXVI (O autor hesita).

Apesar de citarmos todos esses capítulos dizendo que eles englobam a questão da melancolia, nós resolvemos não abordar todos eles. Sobre a melancolia, nós  iremos trabalhar apenas com um capítulo específico — sim, apenas um, pois acreditamos que ele é o que mais aprofunda o personagem nessa condição existencial —, que é o capítulo XXV (Na Tijuca). Neste capítulo o personagem expõe diretamente sua condição e seu incômodo.

Sem mais delongas, Brás Cubas inicia — como se suas palavras fosse o peso mais pesado — o terceiro parágrafo do capítulo assim: “Renunciei a tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desbotar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. — ‘Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!’ — Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso.”. Uma coisa é certa ao lermos essas palavras, que elas escorrem a mais pura bile negra sem parar. Além do mais, mesmo ele estando isolado — aliás, havia sim alguém fazendo companhia a ele —, nós acreditamos que as palavras do poeta inglês são o suficiente para nos fazer imaginar como foram os dias de Brás Cubas nesse lugar. Então imagine, portanto, ele percorrendo para lá e pra cá, perdido em pensamentos que fervilham a mente com ansiedade, e estando envolto de um silêncio que ecoa nas paredes da natureza solitária. Assim dizemos sobre ele: Ecce Homo et tristitia (Eis o homem e sua tristeza).

O tédio, segundo os filósofos, em especial, Cioran e Schopenhauer, é o pior inimigo do ser humano, mas o que essa pobre criatura pode fazer quanto a isso, já que ele — o tédio — faz parte de sua condição existencial? Veja portanto que, segundo esses pensadores, nós somos a morada que abriga o tédio e o êxtase.

O tempo, essa força imparável, se apresenta para quem está nessa condição como a inanidade de qualquer ação. Portanto, imagine então como poderíamos continuar agindo pelo fluir do tempo sem a sensação de sermos marionetes, presas às nossas ilusões? Cioran — o filósofo que mais usaremos nessa questão — diz o seguinte em sua obra Breviário da decomposição: “O tédio é o eco em nós do tempo que se dilacera [...], a revelação do vazio, o esgotamento desse delírio que sustenta ou inventa – a vida.”. Só se pode viver com uma noção enganosa de nossa temporalidade, a qual compreendemos em termos de “dias”, “meses”, “anos”, mas essa é uma compreensão limitada do tempo, veja que ele em seu curso irrefreável e eterno faz tudo se arrastar com sensação de agonia. Assim sendo, podemos dizer que não foram apenas sete dias que Brás Cubas passou hospedado na Tijuca, pois, ao se encontrar nesse estado niilista onde não há mais nada nele, isto é, nenhuma ilusão, essa experiência foi uma eternidade frente ao abismo do “nada”.

O tédio é o resultado inevitável dessa clarividência: a máxima “tudo passa” deixa de ser um clichê paliativo ao espírito e o percorrer do tempo sem propósito ao nada cria raízes na consciência. Deste modo, quando compreendido em seu fluir ininterrupto ao nada, o tempo torna insossas todas as possibilidades.

Frente ao tédio, o próprio desespero converte-se em atividade legítima. Em Silogismos da Amargura, Cioran afirma que sua fonte de vida é a substituição de um desgosto por outro: “À deriva no Vago, agarro-me ao menor desgosto como a uma tábua de salvação.” e “O segredo de minha adaptação à vida? Mudei de desespero como quem muda de camisa.”. Em lugar da angústia, somente se vislumbra o êxtase ou o próprio tédio, neste estado de apatia.

O pobre Brás Cubas já sente o peso do aborrecimento sobre o corpo: “Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coisa a que poderia chamar Volúpia do aborrecimento.”. É uma bela expressão — Volúpia do aborrecimento —, tanto é que ele pede para decorá-la. Contudo, o aborrecimento, que no caso dele se dava na rotina monótona que lhe tomou no arrastar do tempo, pode ser um motor para sair da condição que ele se encontrava, isto é, de estar sob o abismo da melancolia e da resignação do mundo. Tanto é que ao cabo de sete dias ele estava farto da solidão. Esse incômodo faz parte dessa condição de penúria existencial, já é a porta de entrada para a loucura ou a cura. No caso de Brás Cubas reanimava nele a vontade de viver: “Reagia a mocidade, era preciso viver.”. No entanto, essa vontade de viver é aquela proferida por Cioran? Ou seja, será que ele quer mudar de desgosto, ou seja, sair desse estado monótono por um novo desespero?

Dos eventos que se seguem não consideramos aqui tão interessante a questão existencial, pois, vemos que o propósito, apesar de ser “nobre” para “livrar” Brás Cubas da melancolia, seja mais interessante para a questão social — que prometemos falar. Entretanto, seremos generosos aqui, e antes de falarmos das questões sociais iremos apresentar um ensinamento ético — que nós consideramos muito sábio.

Vivas como se já estivesse morto

Para quem almeja um conselho ético que seja capaz — e veja como seremos pretensiosos agora — de mudar a vida, aconselhamos a leitura do capítulo XXIV (Curto, mas alegre). Ficou curioso e quer entender porque nós dissemos isso? Ora, leia o final do capítulo, justamente quando ele diz: “O olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos [...]. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.”. Chegamos à seguinte conclusão em nossa leitura, ou melhor, dessa leitura formamos este excelente conselho: Não precisamos morrer para alcançar a justa liberdade que o defunto autor fala, basta apenas assumir esse paradoxo: Vivas como se já estivesse morto. Portanto, ignore os olhares da opinião — e isso é o mais essencial até mesmo do que se dirá a seguir — e busca apascentar seus interesses e cobiças.

As entrelinhas discretas da crítica social

Se outrora elogiamos aqui a genialidade do autor ao deitar sua pena sobre assuntos existenciais, agora podemos dizer que ele também pode ser visto como um grande cientista social, pois, Machado de Assis foi ao fundo das contradições da sociedade carioca e viu a inoperância de um sistema social e político que resulta na falta de compromisso do — assim chamado por Ariano Suassuna — Brasil oficial para com o Brasil real.

Nós dizemos aqui que Machado de Assis faz uma “crítica nas entrelinhas” porque tal coisa se mostra de modo muito sutil. O capítulo XXXI (A borboleta preta) é sobretudo um excelente exemplo sobre o que pretendemos tratar sobre isso. O texto de Machado de Assis fará através da imagem de uma simples borboleta uma abordagem sobre a questão do racismo.

Sabe-se que o racismo era dominante na sociedade brasileira do século XIX, mas esse problema é mais antigo, e surgiu por causa da escravidão. Fazendo um breve contexto histórico, podemos dizer que a escravidão no Brasil foi uma instituição cruel que existiu durante mais de 300 anos. Ela se estabeleceu aqui por volta da década de 1530, quando as primeiras medidas efetivas de colonização foram implantadas pelos portugueses. Deste modo, das terras brasileiras foram extraídas para a economia colonial o ouro e as pedras preciosas, a cana-de-açúcar e o café; tudo isso ligado ao trabalho escravo. Nesse processo de escravidão, para se fundamentar como tal, usou-se a tática de desumanização sobre os africanos, assim surgindo o racismo em suas múltiplas formas.

Nos anos em que o Brasil viveu sob o regime do trabalho escravo, houveram inúmeros atos de resistência popular — realizadas pelo “Brasil real” — contra a escravidão, por exemplo, o Quilombo de Palmares (1590 - 1695) e a Revolta dos Malês (1835); e também  a resistência do “Brasil formal”, com a leis abolicionistas, se destacando, é claro, a Lei Áurea, aprovada no dia 13 de maio de 1888 com a assinatura da regente do Brasil naquele momento, a princesa Isabel. Apesar da escravidão ter sido abolida, o racismo continuou no imaginário coletivo da sociedade brasileira, perdurando até os dias de hoje.

Mas voltando ao livro, o capítulo XXXI (A borboleta preta), nos traz vários temas para alimentar no senso crítico, tais como: a crueldade humana, a arrogância, o desprezo pelos outros. Mas, é com o racismo que nós ficamos mais abismados. Vamos observar esse capítulo agora.

Primeiramente, vemos que o narrador arrependeu-se do que fez com a borboleta, e assim ele diz: “apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.”, mas logo em seguida ele não sente remorso algum por ter praticado o mal: “[...] me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo.”. No entanto, qual foi a justificativa que ele encontrou para amenizar a consciência do mal feito? Nada mais, nada menos do que algo absurdamente irrelevante: a cor da borboleta. A borboleta é morta porque é preta. Aliás, a cor da borboleta é tão relevante que já aparece no título do capítulo. E o narrador assim se exime da sua maldade, atribuindo à própria borboleta a razão de sua morte, e diz: “Também porque diabo ela não era azul?”.

Veja, contudo, como o texto de Machado de Assis polemiza com esse discurso, negando-se e afirmando que a sociedade não trata os iguais como iguais. A borboleta morre simplesmente por ser preta — aliás, não podemos dizer “simplesmente”, afinal, essa questão deve ser exposta não por meio de simplificações, mas mostrando que o preconceito se sustenta por meios narrativos e ideológicos, como podemos ver no capítulo anterior (XXX: A flor da moita), quando Brás Cubas se admira ao presenciar o horror de Dona Eusébia ao ver uma borboleta preta, e constatar que ela acredita na superstição de que esse inseto, com essa cor, é um sinal de mal agouro.

O final do capítulo é revelador a quem ainda tem dúvida de que aqui se trata sobre o racismo, veja: “creio que para ela era melhor ter nascido azul”.

Outras questões sociais nas entrelinhas

Outro exemplo sutil está no capítulo XXXVIII (A quarta edição), onde Brás Cubas, passando pela Rua do Ourives, resolve consultar as horas e acaba deixando o vidro do relógio cair. Ele entra na primeira loja para consertá-lo, e acaba encontrando uma mulher conhecida de seu passado, essa mulher é ninguém menos que Marcela. Brás Cubas demorou para reconhecê-la, pois sua pele encontrava-se marcada por bexigas e pelo passar do tempo. No entanto, o que nos marcou mesmo foi Brás Cubas constatar o vazio da loja, e ele fazer o seguinte comentário: “era agora pouco buscada — talvez pela singularidade de a dirigir uma mulher.”. Isso nos leva a crer que há aqui uma crítica a padronização social onde os indivíduos exercem suas tarefas de acordo com o seu gênero. Portanto, a falência da loja não se deve pela competência do serviço, mas por um preconceito de gênero.

Além do mais, os capítulos sobre o casamento de Brás Cubas com Virgília — e o capítulo que começa a explorar essa questão é o XXVII (O autor hesita) — também mostram nas entrelinhas outra contradição social. O  casamento para essa época tinha como finalidade ser um arranjo social para desempenhar certas funções e ações, e no caso de Brás Cubas era um imposição do pai para ele conseguir, talvez, uma aparente legitimidade moral para ser deputado. Para a época o casamento arranjado era muito comum, visto que a finalidade dele visava um projeto econômico e político, ou seja, o casamento era a união de duas famílias firmando laços de negócios e de poder, e não a união de duas pessoas que se amassem.

A crueldade de Brás em sua sinceridade

Por fim, chegamos em um ponto delicado, muito além das duas questões: o que Brás Cubas nos diz sobre Virgília é um ato de crueldade ou a exposição do estranhamento de dois indivíduos obrigados a se casarem?

O defunto autor, como já dissemos em outro momento, abriu mão da polidez, assim, ao falar de sua “pretendida arranjada” pelas formalidades éticas de sua época ele não ameniza na descrição, afinal, que sentimento ele tinha a uma desconhecida para render-lhes palavras de amor e de afeto? Deste modo, a descrição que lhe dá não é nada romântica, como é o tradicional costume dos que estão enamorados. Ele não lhe rendeu ares de perfeição, mas evidenciou o que tinha lá, isto é, seus defeitos, como as sardas e as espinhas, coisa da idade, e o pior de tudo: reparando que ela é coxa, repetindo para si essa pergunta: “Por que bonita, se coxa? Por que coxa se bonita?”; no entanto, veja que ele não era totalmente cruel, ainda assim dizia que ela era bonita, ainda reconhece algo positivo no meio de tanto escárnio.

No capítulo XXVII (Virgília?), o autor “brinca” — e entenda que aqui não pretendemos justificar as palavras torpes do personagem — com a diferença entre os elogios que dirigia a ela pessoalmente, naquela época, e o relato “realista” e insensível de sua fisionomia que fazia agora, na sua posição de defunto. Mas ele não considera que mentiu em nenhum dos momentos, afinal, ele justifica isso alegando o seguinte: “Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”. Apesar dessas palavras serem usadas para justificar a insensibilidade com a qual tratava a pobre Virgília em sua narrativa sórdida, cabe reconhecermos que essa frase possui uma sapiência belíssima.

O homem é uma “errata pensante”, ou seja, cada estação da vida reedita a anterior, sempre, até que a versão final seja entregue aos vermes. Isto é belo. É bastante interessante pensar que o ser humano é uma mudança constante. Reconhecemos aqui que esse é o ponto alto do capítulo. E se ele é tal coisa, por que não encerrarmos nossa discussão com essa reflexão?

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Por fim, concluímos nossa discussão sobre esses capítulos — do XXI até o LXII. Daremos continuidade a leitura dos próximos capítulos e iremos trazer mais uma resenha assim que terminarmos, afinal, ainda há muito o que se dizer sobre esse grande clássico da literatura.

__Serraria, 11 de jul., de 2024

Autores:

Janilson Ferreira Fialho Filho (org.)

Mariana Eduarda Bento do Nascimento Silva

Revisão:

Danyelle Fernandes Matias dos Santos

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