Pequeno Ensaio Filosófico: Entre a Crise e a Polêmica Contra o Nada
Livro I
§2 - O Ressentimento como um Construtor da Moral na Sociedade
Pretendo fazer aqui o mesmo que o velho filósofo Hegel fez em sua obra, ou seja, tentar teorizar uma “realidade” humana que se condensa a partir do que vou expor sobre o “ressentimento” e a “moral”. Por conseguinte, se para Hegel o que marcou a história foi a relação desigual entre os seres humanos, isto é, entre tiranos e reprimidos, ou ainda, a dialética histórica como sendo a dialética do “senhor” e do “escravo”. Portanto, que tem movimentado a História Universal é essa contradição entre uns e outros, que criou uma desigualdade na autoconsciência dos seres humanos.
Deste modo, eu proponho aqui adaptar o conceito da teoria do senhor e escravo de Hegel à minha ideia sobre o ressentimento e a moral, afinal, pretendo aqui entender também de onde vem o impulso do desejo de querer empregar um poder de domínio sobre o outro. Portanto, digo que o senhor se impõe sobre o outro, ou melhor, impõe seu ressentimento ao escravo — tanto para oprimi-lo quanto para imprimir em sua consciência sua condição ressentida. Como isso acontece é através da imposição do desejo (da norma) do ser ressentido contra o “desejo-próprio”, portanto, contra aquele que está fora da norma, ou ainda, contra aquele que não se submete ao desejo de outro; assim, o ressentimento leva esse primeiro ao agir opressivo contra esse que tem o desejo-próprio, enquadrando-o em suas normas morais e tirando-lhe o seu desejo. Portanto, o ressentimento sobre o outro desperta o ato opressor da norma, querendo-lhe, portanto, que o ser-com-desejo-próprio renuncie ao seu desejo de autorreconhecimento. O ser-com-desejo-próprio, basicamente, renuncia seu desejo devido ao medo de morrer ou ser banido do meio social pela opressão do senhor ressentido.
Deste modo, a moral desse ser ressentido faz surgir uma forma de consciência no dominado que aceita a norma, mas essa aceitação — como dissemos — também desperta em si um novo ressentimento no sujeito que cedeu seu desejo. Além disso, esta consciência de quem renuncia é a de quem reconhece o outro como um senhor, e reconhece a si como escravo dele — um escravo ressentido, mas escravo. Portanto, ele não consegue moldar uma autoconsciência livre do ressentimento, mas assume a si essa condição a partir de uma lógica na qual impera o olhar vigilante virtual do senhor em seu inconsciente.
Trouxe a nossa discussão sobre a dialética do senhor e escravo como fundamento teórico, aliás, até podemos dizer que ela é a essência do texto. No entanto, não pretendo ficar preso no conceito hegeliano, pois se assim fizer, serei apenas um comentarista dele. Desta maneira, a condição entre dominante e dominado assumirá aqui outra forma, na verdade, uma forma peculiar ao meu pensamento — e, é claro, com auxílio de outros filósofos. Portanto, deixe-me apresentar a questão do poder como sendo uma moral que nasce do ressentimento nutrido contra aquele que não obedece à norma.
Coloco o ser humano em duas categorias existenciais aqui: o “ser solitário” lidando com sua angústia e o “ser social” lidando com seu ressentimento. Com o primeiro — e essa categoria não é necessariamente minha, mas sim dos existencialistas modernos — eu pretendo em outro momento desfazer essa visão pessimista e colocar no ser humano outra perspectiva que não seja essa condição fatídica. Com o segundo, que é justamente o que vou tratar nesse texto, irei discorrer sobre a radicalidade do ressentimento como produtor da moral e da ética social.
A vivência social, principalmente na sociedade classista, é marcada por uma organização que explora no ser humano o seu ressentimento contra o que é visto fora da “norma do rebanho”. Assim, vemos classes sociais e organizações econômicas sob o ressentimento; também vemos o conflito das raças sob o ressentimento; e, por fim, o patriotismo e o protecionismo das fronteiras também sob uma relação que existe sob o julgamento do ressentimento. Deste modo, a sociedade é marcada por uma organização onde todos têm conflitos de acordo com seu ressentimento.
Está um tanto claro que aqui utilizei o termo “ressentimento” da maneira que foi pensado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche em suas obras. Deste modo, será por meio deste termo que pensarei como o ressentimento pode construir um agir social junto da “condescendência” e da “moral”. Além de avaliar como isso se relaciona com a mais comum das manifestações de poder: o discurso.
O discurso necessita instrumentalizar o ressentimento das pessoas adeptas a ideologia de algum grupo específico, através da condescendência, para que elas construam um padrão moral de “bom” e “mau”, cujo intuito seja a construção de uma narrativa que fará com que o bom — o detentor da norma e dos signos morais — use um discurso de “poder reativo” contra o mau — aquele cujo “autoproclamado bom” considera como transgressor da norma moral.
Veja a minha explicação: O ressentimento ganha mais força com o discurso reativo, porque a compaixão e a condescendência despertam no ser humano uma empatia pela figura do oprimido. Assim, o discurso do “opressor”, usando a imagem do “oprimido reativo”, emprega um poder mais forte e válido moralmente contra a figura do “oprimido”, vista como figura opressora.
Todos os seres humanos são seres sociais. Deste modo, se somos seres sociais, nós possuímos grupos sociais. Além disso, todos os grupos possuem uma ideologia, ou seja, uma ideia comum sobre um “signo-comum”, e esse signo-comum conecta os seres sociais no grupo social. Portanto, todos os grupos ideológicos, trabalhando em prol de um signo-comum, e aparentemente o grupo, tenta estender a ideologia a um número elevado de pessoas. Podemos dizer que foi assim que surgiu a ideia de civilização, por exemplo. Além disso, podemos pensar que a ideia de ser civilizado encontra um oposto, que é o de ser-não-civilizado. Contudo, podemos pensar também que, segundo o padrão normativo do ser civilizado, o ser-não-civilizado é um transgressor da lei, da norma e do signo-comum. O ressentimento é uma condição essencial nessa relação de encontro entre o seguidor da norma e o não-seguidor, principalmente por parte do seguidor. Dito isto, chego aqui à mesma conclusão que Michel Foucault: o não-seguidor da norma será considerado um “anormal”, ou melhor, um “traidor da norma”, um não-civilizado por não seguir a ética da civilização. Sendo assim, a norma social tratará o sujeito tido como transgressor de modo repressivo até ele se adequar à ética. O ressentimento é o que impulsiona os sujeitos da norma a uma ação reativa contra os transgressores da norma.
O signo-comum é uma ideia comum que constitui também a identidade do sujeito para se enquadrar no grupo, assim como adiantei um pouco anteriormente quando falei sobre o ser civilizado e o ser não-civilizado. Todavia, o signo-comum constrói tanto a identidade do significante — junto, portanto, de uma ideia moral de “bom” —, quanto a identidade do opositor do significante — e nem precisamos nos estender tanto para dizer que a oposição receberá a ideia moral de ser “mau”. Podemos dizer, deste modo, que há vários signos-comuns de identidade, por exemplo, temos a figura de ser um “ser humano” contra o “não-ser-humano”; o Nazismo, por exemplo, foi um regime totalitário que usou dessa narrativa, visto que eles se identificam como seres “humanos” — e ainda pondo um acréscimo no discurso, que era o signo-comum de que todos os alemães eram perfeitos — e quanto aos judeus, homossexuais e pessoas com deficiências o tratamento social reativo deles era de fazê-los serem vistos como não-seres-humanos.
Ademais, todos os grupos ideológicos trabalham com algum tipo de ressentimento sobre o outro visto como diferente da norma social do grupo, no entanto, cabe a nós nesse texto perceber o uso instrumental da moral que cria as figuras caricatas e simplórias de “bem” e “mal”. Deste modo, é por meio dessa construção narrativa moral que vemos os indivíduos entrarem em conflito, isto é, usando o que acabei de explicar mais acima. Veja o seguinte: se um grupo X usa sua moral para colocar-se como “bom”, logo esse grupo X coloca o grupo Y como “mau”; observe, portanto, que se ocorrer uma reação do grupo Y, isso colocará a imagem do grupo X como sendo o oprimido da vez; assim, o discurso reativo do grupo X, que se considera “bom”, ganha mais força reativa — principalmente pelo apoio popular, ou melhor, o apoio do rebanho que legitima a moral do grupo — para oprimir o grupo Y, que é considerado “mau” pelo grupo X. Por outro lado, o grupo Y também faz o mesmo jogo discursivo que o grupo X — cabe lembrarmos do quão cinza é a natureza humana, pelo menos é o que dizem os essencialistas contrários ao maniqueísmo —; portanto, o grupo Y usa sua imagem de oprimido para criar uma imagem moral de ser “bom”, e taxar o grupo X como “mau”, e fazem um discurso reativo legítimo contra o outro grupo.
Assim chegamos a conclusão de como opera a lógica do conflito, uma lógica fundamentada pelo ressentimento, que é ter uma narrativa moral que define as identidades por signos-comuns (de bem e mal), que conquiste a condescendência do povo pela aparência do ser oprimido, e dessa condescendência surge uma validação do ato de poder reativo opressor.
Contudo, ao dizer isso não desvalorizo aqueles que são realmente oprimidos pela sociedade ressentida, ou seja, as pessoas exploradas e oprimidas pela sociedade classista, racista e intolerante de qualquer expressão religiosa, mas faço um alerta de suma importância: que essa condição humana — o ressentimento — também está impressa nos oprimidos — como vimos no momento em que tratamos o conceito hegeliano do senhor e escravo —, portanto, para uma transformação social realmente efetiva, isto é, uma ascensão social dos oprimidos, ela deve ser um processo libertador dessa condição falha — ou pelo menos apaziguador —, porque se não for assim, a roda da opressão continuará girando, porque ela continua sendo alimentada pelo ressentimento.
Por Janilson Fialho, I. VIII. MMXXIV
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