Houve uma época na internet em que textos atribuídos falsamente a Arnaldo Jabor [1940-2022] eram espalhados por e-mail em correntes digitais mesmo não sendo de sua autoria. E algumas vezes Jabor teve que desmentir publicamente que tivesse escrito determinado texto que ganhava grande repercussão na web. O fenômeno digital dos anos 2000, que continuou com o advento das redes sociais, era fruto do sucesso dos artigos de Arnaldo Jabor publicados no Estadão, onde escreveu semanalmente de 2001 a 2017, e em outros jornais.
Ao atribuir a autoria a Jabor, quem espalhava a fake literature tentava dar credibilidade ao falso texto que tentava emplacar. Os textos de falsa autoria jaboriana nem sempre eram sobre política, um dos seus temas recorrentes, mas não o único de suas colunas, onde também discorrria sobre comportamento humano e outras questões cotidianas. Muitos dos textos atribuídos falsamente a Jabor eram românticos ou edificantes, bem destoantes do estilo do cineasta que virou cronista e comentarista após se desiludir com ao cinema nos anos 90.
Em 2002, um dos textos verdadeiros de Arnaldo Jabor publicados no Estadão tocou uma leitora em especial e ganhou um rumo mais inesperado que os das correntes digitais. Após ler o artigo "O amor atrapalha o sexo", publicado em 17 de dezembro de 2002, a cantora e compositora Rita Lee ficou tão empolgada e inspirada que compôs a música "Amor e Sexo", lançada no disco Balacubaco em 2003.
Com o sucesso da música, que emocionou Jabor, conforme escreveu em outros artigos sobre a inesperada parceria, a canção inspirou o título de seu livro "Amor é Prosa. Sexo é Poesia", no qual reuniu crônicas sobre amor e sexo, ou "crônicas afetivas", como preferia definir. "A música é linda, estou emocionado, não mereço tão subida honra, quem sou eu, quase enxuguei uma furtiva lágrima com minha “gélida manina” por estar num disco, girando na vitrola sem parar com Rita, aquela hippie florida com consciência crítica, aquela hippie paródica, aquela mulher divinamente dividida, de noiva mutante ou de cartola e cabelo vermelho que, em 67, acabou com a caretice de Sampa e de suas lindas “minas” pálidas."
O amor atrapalha o sexo
Arnaldo Jabor
Sábado, fui andar na praia em busca de inspiração para meu artigo de jornal. Encontro duas amigas no calçadão do Leblon. “Teu artigo sobre amor deu o maior auê...” – me diz uma delas. “Aquele das mulheres raspadinhas também... Aliás, que que você tem contra as mulheres que barbeiam’ as partes?” – questiona a outra. “Nada... – respondo – acho lindo, mas não consigo deixar de ver ali nas ‘partes’ dessas moças um bigodinho sexy... não consigo evitar... Penso no bigodinho do Hitler, do Sarney – lembram um sarneyzinho vertical nas modelos nuas... Por isso, acho que vou escrever ainda sobre sexo...”
Uma delas (solteira e lírica) me diz: “Sexo e amor são a mesma coisa...” A outra (casada e prática) retruca: “Não são a mesma coisa não...” “Sim, não, sim, não” – nasceu a doce polêmica ali à beira-mar. Continuei meu cooper e deixei as duas lindas discutindo e bebendo água-de-coco. E resolvi escrever sobre essa antiga dualidade: sexo e amor.
Comecei perguntando a amigos e amigas sua opinião. Ninguém sabe direito. As duas categorias se trepam, tendendo ou para a hipocrisia ou para o cinismo; ninguém sabe onde a galinha e onde o ovo. Percebo que os mais “sutis” defendem o amor, como algo “superior”. Para os mais práticos, sexo é a única coisa concreta.
Assim sendo, meto aqui minhas próprias colheres nesta sopa. O amor tem jardim, cerca, projeto. O sexo invade tudo. Sexo é contra a lei, no fundo de tudo. O amor depende de nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre sem tesão. O sexo é um desejo de apaziguar o amor. O amor é uma espécie de gratidão à posteriori pelos prazeres do sexo.
O amor vem depois. O sexo vem antes. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento. No sexo, o pensamento atrapalha; só as fantasias ajudam. O amor sonha com uma grande redenção. O sexo só pensa em proibições; não há fantasias permitidas. O amor é um desejo de atingir a plenitude. Sexo é o desejo de se satisfazer com a finitude.
O amor vive da impossibilidade sempre deslizante para a frente. O sexo é um desejo de acabar com a impossibilidade. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos. Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão de domicílio. Amor é o sonho por um romântico latifúndio; já o sexo é o MST. O amor é mais narcisista, mesmo quando fala em “doação”. Sexo é mais democrático, mesmo vivendo no egoísmo. Amor e sexo são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno. Amor pode ser veneno ou remédio. Sexo também – tudo dependendo das posições adotadas.
Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do “outro”; o sexo, no mínimo, precisa de uma “mãozinha”. Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até mais sozinhos, na solidão e na loucura. Sexo, não – é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. Amor muitas vezes é uma masturbação. Sexo, não. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós. O sexo vem dos outros. Não somos vítimas do amor; só do sexo. “O sexo é uma selva de epilépticos” (Nelson Rodrigues) ou “o amor, se não for eterno, não era amor” (NR). O amor inventou a alma, a eternidade, a linguagem, a moral. O sexo inventou a moral também do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge.
O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um caubói – quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: “Faça amor, não faça a guerra.” Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas... O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica. O sexo sempre existiu – das cavernas do paraíso até as saunas relax for men.
Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do século 12 e, depois, revitalizado pelo cinema americano da direita cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem – o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção, sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira de controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria das sacanagens. O mercado programa nossas fantasias. Não há “saunas relax” para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um “amorzinho” para iniciar. O amor está virando um hors-d’oeuvre para o sexo.
O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa “grandeza”. O sexo sonha com as partes baixas. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há “sexo seguro”, mas não há camisinha para o amor.
O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo o sonho dos casados. A (O) amante sacia nossa fome de verdade, mata nossa nostalgia da animalidade. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente no ciúme (Proust). O grande sexo sente-se como uma tomada de poder. Amor é de direita. Sexo de esquerda (ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta). E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos afastar da morte. Ou não; sei lá... e-mails de quem souber para a redação.
Transcrito do Estaão Online
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