Autor: Janilson Ferreira Fialho Filho
O filósofo franco-magrebino Jacques Derrida (1930-2004), muito conhecido por sua teoria da “Desconstrução” e “Differance”, em um pequeno texto chamado “O Animal que Logo Sou”, expõe a maior negligência da história do pensamento, sendo a maneira como os intelectuais pensaram a respeito dos animais. Deste modo, o filósofo examina em sua obra as divisões entre o ser humano e os animais que a tradição condicionou, e questiona a existência dessa separação absoluta estabelecida historicamente entre as duas categorias.
Derrida denuncia, portanto, uma certa negligência da maneira como se pensa a existência e o ser dos animais. Sua denúncia vem acompanhada de uma série de questões fundamentais, por exemplo: será que as coisas têm existência da mesma forma que os seres viventes? O que é de fato a vida ou como podemos definir o que é vida? Os animais são considerados seres vivos?, entre outras. Além disso, como podemos dizer (com base nessas questões que trouxemos aqui) que certas correntes científicas e filosóficas, por muito tempo, consideraram que só tem vida o ser que tem consciência, no entanto, os animais (como consideram os cientistas) não têm consciência, portanto, se os animais não tem isso, logo eles podem ser considerados seres animados? Afinal, o que é a consciência, será que ela é e tão somente é, da maneira tradicional que sempre pensamos sobre ela?
Contudo, podemos afirmar que essas questões, diretamente ligadas aos animais, foram desprezadas — e desprezada aqui está no sentido do ser humano considerar a existência desses seres como inferior comparado a si — pelos filósofos, como Descartes, Kant, Levinas e Heidegger, por exemplo. No entanto, as perguntas que trouxemos agora fazem esse argumento que distingue a humanidade e a animalidade não ficar tão claro quanto geralmente se acredita, afinal, podemos notar que ela é permeada de ambiguidades e contradições.
O que Derrida faz em seu texto, portanto, é uma exploração profunda e complexa da relação entre humanos e animais. A principal questão dele, na verdade, é pensar nos animais, desde seus aspectos ontológicos, epistemológicos e até — e esse é um ponto bastante forte na obra — em seus direitos. Sendo assim, a crítica de Derrida expõe que o máximo que a filosofia — e também a teologia — abordou sobre os animais foi pensar neles sob uma perspectiva utilitarista devido a uma inferioridade racional, mas não apenas isso, o filósofo não voltará sua atenção apenas ao que diz respeito o Logos, ou ainda, à disposição ou não do Logos no animal, ele quer saber disso: “a questão prévia e decisiva seria a de saber se os animais podem sofrer.” (DERRIDA, 2002, p. 54).
O julgamento do ser humano sobre o animal, ou seja, o julgamento que coloca o primeiro como ser superior e o último como ser inferior, foi um pressuposto perfeito para o ser humano dissimular sua crueldade a uma condição moral, veja o que Derrida diz: “Ninguém mais pode negar seriamente e por muito tempo que os homens fazem tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular essa crueldade, para organizarem escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência que alguns poderiam comparar aos piores genocídios (existem também os genocídios animais: o número de espécies em via de desaparecimento por causa do homem é de tirar o fôlego).” (DERRIDA, 2002, p. 52).
Por conseguinte, ao falarmos anteriormente da questão utilitarista, devemos apresentar uma denúncia ética extremamente importante — e já podemos ver isso na citação anterior, onde ele já expõe a organização do genocídio animal —, assim sendo, veja o que Derrida diz especificamente sobre essa questão nesta passagem:
“[...] o aniquilamento das espécies, de fato, estaria em marcha, porém passaria pela organização e a exploração de uma sobrevida artificial, infernal, virtualmente interminável, em condições que os homens do passado teriam julgado monstruosas, fora de todas as normas supostas da vida própria aos animais assim exterminados na sua sobrevivência ou na sua superpopulação mesmo. Como se, por exemplo, em lugar de jogar um povo nos fornos crematórios e nas câmaras de gás, os médicos ou os geneticistas (por exemplo, nazistas) tivessem decidido organizar por inseminação artificial a superprodução e supergeração de judeus, de ciganos e de homossexuais que, cada vez mais numerosos e mais nutridos, tivessem sido destinados, em um número sempre crescente, ao mesmo inferno, o da experimentação genética imposta, o da exterminação pelo gás ou pelo fogo. Nos mesmos abatedouros.” (Idem).
Deste modo, podemos ver que, diferente do genocídio nazista, o genocídio de animais parte aqui de uma concepção de biopoder muito semelhante daquela que está na obra crítica do filósofo francês Michel Foucault, onde vemos uma contradição do seguinte modo: a sociedade cuida da vida e, ao mesmo tempo, mata ela.
Consideramos importante trazer uma explicação mais detalhada dessa análise foucaultiana, pois, ela pode resumir a questão do texto de Derrida, portanto: para Foucault há uma transformação no direito político que se torna ativo de fato no século XIX, não mudando de forma ampla, mas, configurando a partir de uma inversão, isto é, o poder soberano, de “fazer morrer ou deixar viver”, passou a ser o de “fazer viver e deixar morrer”. Por conseguinte, a valorização dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder, ou seja, centradas no corpo individual, são técnicas voltadas à força daquilo que é útil, ou como Foucault diz: “O corpo, relacionado a isso que acabamos de abordar, se torna uma força útil por se tornar um corpo produtivo, afinal, ele se tornou um corpo submisso.” (Cf. FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade, 1987, p. 29). Contudo, a tecnologia do poder disciplinar — e disciplinar aqui nós poderíamos dizer como sendo a domesticação — torna o corpo submisso, e essa submissão, no caso dos animais, tem como propósito — ou vários propósitos —, a conservação de uma vida utilitária, ou seja, o controle da vida para o abate ou o uso experimental, ou mais precisamente como Derrida disse: organizar essa vida para a inseminação artificial e a superprodução e super geração, e a finalidade é a morte.
Com essa explicação, chegamos, portanto, a uma consideração importante de Derrida: “Todo mundo sabe que terríveis e insuportáveis quadros uma pintura realista poderia fazer da violência industrial, mecânica, química, hormonal, genética, à qual o homem submete há dois séculos a vida animal. E o que se tornou a produção, a criação, o transporte e o abate desses animais.” (DERRIDA, 2002, p. 53). Deste modo, vemos que a frase de Derrida provoca uma reflexão sobre a desconexão entre a capacidade estética de retratar a violência e a apatia que pode existir em relação à realidade que ela representa. Afinal, o filósofo critica a normalização dessa violência, apontando para um problema ético e moral subjacente. A produção, criação, transporte e abate de animais para fins humanos, que ele menciona, se tornaram processos amplamente desumanizados e mecanizados. Isso implica diretamente como lidamos com a vida animal, isto é, ela sendo reduzida à lógica produtiva e à eficiência econômica, colocando em segundo plano a consideração moral pela vida desses seres.
Ademais, Jacques Derrida aborda mais a seguir, nesse mesmo parágrafo, a relação entre a ética, a compaixão e a forma como tratamos os animais e o “vivente”, em geral:
“[...] diante da negação organizada dessa tortura, algumas vozes se levantam [...] para protestar, para apelar, voltaremos a isso, ao que se apresenta de maneira tão problemática ainda como os direitos do animal, para nos acordar para nossas responsabilidades e nossas obrigações em relação ao vivente em geral, e precisamente a essa compaixão fundamental que, se fosse tomada a sério, deveria mudar até os alicerces [...] da problemática filosófica do animal.” (Idem).
Apesar dessa negação, há um reconhecimento de que ainda existem pessoas e grupos que protestam contra essa injustiça, levantando questões sobre o tratamento dos animais e a necessidade de seus direitos. Essas vozes podem ser entendidas como um chamado à ação ou à reflexão crítica sobre as atitudes dos seres humanos em relação ao sofrimento animal. Derrida sugere que, ao considerarmos a situação dos animais, devemos nos deparar com a complexidade e as dificuldades filosóficas que cercam os direitos dos seres não humanos. Essa é uma questão que continua a ser debatida e, ao mesmo tempo, é problemática, pois envolve uma reavaliação das noções de moralidade e ética que impera na sociedade.
Contudo, O Animal que Logo Sou, de Derrida, é uma obra que desafia as fronteiras tradicionais entre a relação humanidade/animalidade, questionando a clareza dessas distinções e explorando as complexas implicações éticas no que diz respeito à exploração da vida desses seres. Portanto, essa obra nos convida a ponderar sobre a ética do tratamento dos animais na sociedade contemporânea e os modos como essa violência é frequentemente ignorada ou minimizada.
Referências:
DERRIDA, J. O animal que logo sou (A seguir). Tradução Fábio Landa. – São Paulo: Editora UNESP, 2002.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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