Confraria das Traças

Apresentação do grupo de leitura

Muito me alegra voltar a escrever para o Dito & Feito! O Dito & Feito está voltando com suas atividades, apesar da ausência do seu fundador, mas sei que tanto o site quanto o legado de Wellington estão em boas mãos. A família dele — e eu que estou a frente das aulas de música — está preservando e dando continuidade ao seu projeto social. A casa de Wellington, por exemplo, logo se tornará um ponto de cultura formalizado, isto é ótimo porque assim haverá uma visibilidade maior do projeto, e digo que até mais do que já tinha. Além do mais, podemos aqui adiantar uma prévia do que se tornará o projeto do professor Wellington, isto é, o que será mostrado agora no próximo Caminhos do Frio (2024), onde nós faremos uma homenagem ao professor.

 

Nossa homenagem terá a participação do grupo Evocare fazendo, eles farão uma palestra sobre a obra de Ariano Suassuna — aliás, a obra de Ariano é o tema do Caminhos do Frio desse ano — e uma apresentação de poesia; e, é claro, haverá apresentações de música instrumental (sopro e violão) com os ex-alunos do professor e com os atuais que estão sob minha tutela; além disso, teremos também o lançamento de dois livros (Serraria - a Princesa do Brejo e O Poeta das Margaridas) do conterrâneo José Nunes. Mas, vamos voltar ao assunto desse texto.

 

Estou voltando a escrever sobre literatura e outros gêneros de “escritura” aqui por causa do novo projeto da Casa de Wellington Farias, que é o grupo de leitura “Confraria das Traças”. Sim, o nome vem justamente do espaço que há aqui no Dito & Feito que serve justamente para publicar as resenhas dos leitores do blog. Tive tal ideia justamente por estar cuidando da biblioteca do professor, além de estar cumprindo uma das vontades dele: fomentar o hábito da leitura aos nossos conterrâneos.

 

Como já disse, o propósito deste projeto é formar um clube de leitura e discussão. O propósito dele segue os seguintes pontos: I) a Confraria das Traças tem como objetivo ser um grupo em que qualquer um pode participar, ou seja, ele não é apenas destinado a quem gosta de ler, mas também para aqueles que não tem esse hábito, pois, o que buscamos aqui é a formação de novos leitores; II) a Confraria é um grupo de discussão, de leitura coletiva e da divulgação do conhecimento; III) a Confraria não será um grupo fechado ou restrito a um único gênero de “escritura”, afinal, nós temos a pretensão de ler as mais variadas obras da filosofia, da sociologia e da literatura e poesia (desde o clássico até o contemporâneo; desde as obras brasileiras até as estrangeiras).

 

Como será a leitura do grupo? Pensamos nessa questão do seguinte modo: I) sobre os debates: a proposta é fazer uma leitura coletiva de um livro escolhido através de uma votação. Os debates para discutir a leitura serão, inicialmente, a cada 15 dias. Deste modo, para haver uma melhor organização da leitura, será avaliado o tamanho da obra para dividir um certo número de páginas adequadas ao tempo de cada um. Sobre as impressões da leitura, o leitor deverá anotar elas e, caso queira, expor no dia do encontro marcado. II) para aqueles que realmente não podem acompanhar o ritmo da leitura coletiva, propomos o seguinte: uma leitura individual de uma obra escolhida por conta própria. Todavia, o leitor deve, se quiser, ir colocando suas impressões no grupo da Confraria — aliás, logo falarei do grupo. III) para aqueles que possuem tempo, também há possibilidade de ler tanto a obra da leitura coletiva quanto a obra da leitura individual. Essa proposta de apresentar as impressões da leitura coletiva e individual no grupo no dia do encontro foi pensada justamente nos leitores vorazes.

 

O grupo online surgiu através de Eloise. Ela quem me sugeriu tal ideia porque ela participou com Wellington de um grupo nacional de leitura coletiva. Um grupo online permite que possamos compartilhar essa leitura para as pessoas que estão distantes e, de certo modo, isso é uma vantagem para nós no que diz respeito à inclusão de mais membros. Assim reuni para essa experiência — eu ainda considero que o grupo está em fase de teste — poucas pessoas, mas pretendo abrir o grupo para mais leitores depois de finalizarmos a atual leitura. E por falar na atual leitura, mostrarei o que estamos lendo atualmente.

 

Foi proposto aos membros do grupo três livros para a primeira leitura coletiva:

 

- O Crocodilo, de F. Dostoievski;

- A Metamorfose, de F. Kafka;

- Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

 

Restando apenas duas pessoas para votar, a quantidade de votos já indicava que o livro de Machado de Assis iria vencer. Assim, foi declarado que Memórias Póstumas de Brás Cubas seria a nossa leitura coletiva.

 

Assim propus ao grupo duas coisas nessa leitura, que são o seguinte: relatar a experiência com a forma de escrita do autor e destacar (marcando no texto) alguma passagem que lhe chamou atenção. Considero essa ação necessária para se fazer uma leitura atenta. Para demonstrar tal coisa, eu escrevi um pequeno texto a respeito disso e postei no grupo. Mas esse texto não vai ficar exclusivo no grupo, eu vou mostrá-lo aqui também.

Sobre Ler e Reler — ou Conselho à quem vai ler ou reler Machado de Assis

Aos que vão ler “Memórias Póstumas..” pela primeira vez, eu digo isso: assim como Kant foi o filósofo que buscou a conciliação entre o empirismo e o racionalismo no século XVIII, aqui farei o mesmo, mas do seguinte modo: procuro incentivar a conciliação entre a “sensação” e a “razão” na leitura. A atividade de ler desperta alguma sensação, e essa sensação — seja ela qual for — será válida no seu relato, na sua experiência de ler. A razão, por sua vez, se dará através da “leitura ativa”, ou seja, na leitura que procura destacar, marcar e comentar certas passagens, tal ato representa uma forma de empregar a razão, a curiosidade e o entendimento na leitura.

 

Deste modo, devemos pensar o seguinte sobre a junção de sensibilidade e conhecimento no ato de ler: ela é uma noção “circular”. A literatura, assim como toda arte, é uma ativação da sensibilidade em conhecimento, mas não pense que o conhecimento é a finalidade que vem logos após a sensibilidade, lembremos outra vez da noção circular, portanto, não apenas conhecemos quando lemos, também sentimos quando lemos, e visse e versa. Contudo, nesta experiência explore teus sentimentos e use teu entendimento — e também o seu não-entendimento — para formular um juízo acerca da tua leitura.

 

Agora, dirigindo-me aos que já leram Memórias Póstumas de Brás Cubas, proponho uma pergunta: afinal, por que reler? Por que repetir essa leitura? Ou simplesmente, por que repetir? O filósofo da escola de Frankfurt, Theodor Adorno, até questiona sobre essa “repetição”, ou seja, por que vemos ou lemos mais de uma vez, e inúmeras vezes, o mesmo filme ou o mesmo livro? Adorno dirá que a indústria cultural oferece “produtos” — e a literatura, em certos casos, pode ser um desses produtos — que promovem uma satisfação compensatória, que agrada aos indivíduos e os “desligam” de qualquer problema do mundo real, por isso que há tanta repetição ou releitura. Mas, por que eu trouxe essa ideia de repetição? Porque na época de Adorno, marcado pelo industrialismo, e mais ainda atualmente, a repetição já é algo insuportável ao ser humano, além de ser um processo de alienação.

 

No entanto, não é essa a resposta que quero apresentar, porque não quero fazê-los desistir da ideia de repetição. Para literatura eu proponho o seguinte: releia essa obra seguindo a ideia de “Devir” do filósofo Deleuze. O Devir, segundo Deleuze, é um “desterritorializar-se do modelo”, ou seja, o devir é um processo de desvio. Assim, desvia — ou foge — do teu modelo fixo ou da ordem estabelecida que você empregou naquela primeira leitura, ou daquela mesma avaliação que tu fez outrora na primeira leitura; em outras palavras, torna a tua leitura diferente do que é. Portanto, faça uma releitura rizomática (outro termo de Deleuze), uma leitura que se espalha, ou seja, que sua perspectiva seja um movimento que siga várias direções, que siga por outras interpretações, afinal, tu não é mais aquele leitor de antes. Contudo, releia “Memórias Póstumas…” outra vez e tente perceber se tua perspectiva da obra mudou, tal como mudou às águas do rio (frag. B91) de Heráclito.

 

Por fim, leia/releia esta obra fantástica e revolucionária em seu conceito e narrativa. Enfrente as rabugens do pessimismo do defunto narrador de Machado de Assis, mas saibas que até no pessimismo Machado é diferente, pois, seu pessimismo tem humor, ou como ele diz, por meio do seu personagem: “Escrevi-a [essas memórias] com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Boa leitura.

 

Sex., 7 de jun., 2024

 

Com esse texto eu busquei incentivar a leitura e a releitura desse grande clássico da literatura nacional — na verdade, Machado de Assis é um clássico universal, afinal, ele nada deve a escritores como Shakespeare ou Dostoievski.

 

Como disse outrora, poder-se-ia ler qualquer outra obra e fazer comentários sobre ela no grupo, assim com essa “ideia fixa” aproveitei para comentar certas passagens de algumas obras filosóficas que eu tanto leio por causa da minha jornada acadêmica, por exemplo, comentei uma passagem do livro do filósofo Georges Di-Huberman, chamado de “O Que Vemos, O Que Nos Olha”. Nesse comentário busquei outra vez fazer uma aproximação com nossa leitura coletiva, além, é claro, de fazer um comentário amplo ao que seja a arte. Veja o que foi dito:

Reflexão sobre ver e perder em Di-Huberman

Esse pequeno ensaio intitulado de “A inelutável cisão do ver”, do filósofo Georges Di-Huberman, traz uma coisa essencial para os amantes das artes (seja lá qual for o tipo): ver é perder! Sim, a contemplação da arte é essencialmente, para esse pensador, uma “perda”. Quando olhamos, quando assistimos ou quando ouvimos qualquer coisa, nós deixamos de ver outras, ou seja, perdemos de ver outras. A relação do tempo em si com a arte é de perda; ora, perdemos tempo ouvindo música ou assistindo um filme. Mas a fruição da arte necessita dessa perda de tempo, e isso mostra o oposto do que vivemos hoje na nossa sociedade capitalista, onde tudo é tratado como investimento.

 

A nossa mente hoje trata as coisas, em especial a arte, como se fosse um investimento, isto é, eu só faço tal coisa se isso me trouxer um retorno, ou ainda, eu questiono antes de experimentar se isso é um bom investimento do meu tempo, ou seja, limitamos nossa experiência do belo ao utilitarismo. Saibam, por exemplo, que ler Machado de Assis é uma perda de tempo, mas é isso o que o faz ser uma obra de arte eterna!

 

Nós sabemos que a obra de Machado de Assis é algo tão extraordinário — aliás, não pense que estou instigando a procurar apenas o que é considerado bom pela crítica, isso me faria entrar em contradição, pois, estaria entrando na mesma lógica utilitária, então pode ser qualquer coisa do mundo da arte — que vale a pena perder tempo lendo!

 

Deste modo, a arte é perder tempo, perder dinheiro e principalmente perder a si mesmo. Perca-se na obra, perca-se ao ler Memórias Póstumas…, de Machado de Assis; tu perde a si mesmo (o teu ego) para vivenciar a vida daqueles personagens, ou seja, tu perde a si mesmo para ser o Brás Cubas ou a Marcela, e você só pode assumir essa persona perdendo a sua própria persona. Além do mais, a perda revela o que a arte é: “inútil”. Mas, o sentido de inútil aqui é contra essa lógica capitalista de retorno e investimento.

 

Ter., 18 de jun., 2024

 

Busquei, portanto, uma maneira de incentivar e transmitir algum conhecimento aos membros do grupo através do que eu vou aprendendo com as minhas leituras. É nisso que creio, e foi assim que eu aprendi com o professor, repassar ou passar adiante o conhecimento.

 

Assim termino esse texto, bastante ansioso para publicar nossa primeira resenha aqui no Dito & Feito. Logo ele sairá, pois, segundo nosso cronograma já chegamos no dia do primeiro encontro.

 

Por Janilson Fialho.

Dom., 23 de jun., 2024.

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