Chegamos na penúltima resenha da leitura coletiva do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesse texto, o grupo Confraria das Traças apresentará um resumo dos capítulos CVI até o CXLVI, uma análise da obra e uma exposição de máximas do defunto autor, além de uma crítica a um capítulo específico.

A leitura coletiva ocorreu entre os dias 24 de julho e 7 de agosto. Como o leitor já sabe, nós obtivemos ótimos resultados sobre a história. Pretendemos trazer um resumo e uma análise feita por Maria Eduarda, e os demais textos foram feitos por mim.

Resumo

Brás Cubas, em um momento de introspecção, questiona a situação de sua amada Virgília com Lobo Neves, sentindo uma confusão emocional ao ler dela um bilhete que pede cuidado. Enquanto isso, Quincas Borba aborda suas teorias sobre o Humanitismo. Após um encontro inesperado com Virgília, Cubas percebe a tensão no relacionamento entre ela e Lobo Neves, que parece temer a opinião pública. Após a partida de Virgília, Cubas tenta seguir em frente, mas enfrenta a morte prematura de sua nova pretendente, Nhã-loló, sem grande sofrimento. Anos depois, ele e Lobo Neves se encontram na Câmara, ambos lidando com ressentimentos. A perda da cadeira de deputado causa desânimo em Cubas, que reflete sobre a inércia de sua vida. Após a morte de Dona Plácida, ele decide fundar um jornal, redigindo um programa baseado no Humanitismo, sem citar diretamente Quincas Borba.

Perspectiva analítica dos capítulos

Nos capítulos CVI ao CXLVI de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o personagem Brás Cubas continua a observar a vida dos vivos com um olhar desencantado e irônico, refletindo sobre sua própria existência e a sociedade que deixou para trás. O protagonista, já um espectro, analisa com distanciamento e crítica o comportamento humano, a efemeridade das conquistas e o sentido da vida.

Ele percebe que, mesmo após sua morte, os vivos seguem com suas rotinas e preocupações, muitas vezes sem notar a sua ausência. Cubas observa a continuidade da vida, a superficialidade das relações sociais e a futilidade de muitos valores humanos. Ele reflete sobre suas próprias escolhas e ações, questionando o impacto real que teve sobre o mundo e as pessoas ao seu redor.

À medida que os capítulos avançam, o protagonista oferece uma visão crítica sobre instituições sociais e políticas, criticando a falta de progresso genuíno e as contradições na vida pública. Brás Cubas examina a moralidade, a ambição e o amor com um olhar desencantado, destacando a fragilidade das aspirações humanas.

Epígrafe a discursos sem assunto

O autor em seu capítulo CXIX (Parênteses) faz jus ao título ao abrir parênteses na sua história para registrar as máximas que criou nesse período. Aconselha usá-las como “epígrafe a discursos sem assunto”. Elas são:

- “Suporta-se com paciência a cólica do próximo.”;

- “Matamos o tempo; o tempo nos enterra.”;

- “Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.”;

- “Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.”;

- “Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta é a reflexão de um joalheiro.”;

- “Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.”.

Contudo, que fiquem registradas aqui essas máximas para a reflexão do leitor desta resenha.

Crítica ao Humanitismo

É muito comum vermos escritores de literatura “debocharem” da filosofia ou da ciência. O caso que irei escrever aqui torna esse ponto bastante evidente. Assim, citando dois grandes escritores brasileiros, Ariano Suassuna e Machado de Assis, temos em suas obras a similaridade de ter personagens filósofos com sistemas de pensamento que são verdadeiras paródias dos filósofos reais. Portanto, temos, em primeiro lugar, a “Filosofia do Penetral” do personagem Clemente, do Romance d'A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna; e, em segundo lugar, o “Humanitismo” de Quincas Borba, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis — desse mesmo autor poderíamos até citar o personagem Simão Bacamarte, de O Alienista, como paródia a psiquiatria.

Sobre primeiro, ou seja, sobre a filosofia do penetral, o próprio Ariano Suassuna em uma entrevista concedida a Letícia Lins para o jornal O Globo (caderno “Prosa & Verso”, junho/2005), nos conta que sua intenção de criar tal sistema filosófico era o seguinte: “Em ‘A Pedra do Reino’ escrevi um capítulo, a ‘Filosofia do Penetral’, só para me divertir. Pensei que ninguém entendesse. Quem lê, entende como uma brincadeira. Mas quem conhece filosofia, descobre facilmente que é uma sátira à filosofia alemã contemporânea. Estive no Rio de Janeiro e encontrei um professor que entendeu. E está fazendo uma dissertação de mestrado sobre esse capítulo de ‘A Pedra do Reino’, que é a filosofia de Heidegger satirizada por mim.”.

Apesar da intenção do autor ter sido uma brincadeira sem muito compromisso, vemos que, mesmo assim, essa sátira filosófica rendeu um trabalho acadêmico.

Para efeito de riso, os personagens de Ariano e de Machado aparecem de modo soberbos, orgulhosos, arrogantes, misteriosos, aliás, esse é o estereótipo mais comum dos filósofos: uma pessoa que fala difícil com um ar de mistério. Veja como o filósofo Clemente responde a Quaderna sobre sua filosofia do penetral:

“[...] — Clemente, esse nome de 'penetral' é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer ‘penetral’, hein?

 [...] — Olhe, Quaderna, o ‘penetral’ é de lascar! Ou você tem a 'intuição do penetral' ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que ‘o penetral’ é ‘a união do faraute’ com o ‘insólito regalo’, motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!”.

Resumimos praticamente tudo o que dissemos a respeito da soberba dos filósofos com essa citação. Porém, devemos passar para o caso que dá nome a esse texto. Deste modo, veremos a filosofia de Quincas Borba, que, assim como a de Clemente, se propõe a ser um método revolucionário do pensamento, ou melhor, como algo que supera todas as outras perspectivas.

No capítulo CLVII de Memórias Póstumas, o personagem — deveras peculiar — Quincas Borba proclama sua tese intitulada de “Humanitismo” como sendo a “única verdade”, portanto, negando as demais verdades, isto é, a verdade do Budismo, Bramanismo, Islamismo, Cristianismo e, por fim, todos os sistemas de pensamento e de crenças da história da humanidade. Em um sentido amplo, o humanitismo significa a valorização do ser humano e da “condição humana” acima de tudo. Portanto, ele está relacionado com a generosidade, a compaixão e a preocupação em valorizar os atributos e realizações humanas. Entretanto, percebemos que não há nada de revolucionário aqui no discurso de Quincas, pois, tal conceito está indo no mesmo caminho da filosofia subjetivista do século XVIII; veja, portanto, que no humanitismo o ser humano passou a ser o centro de seu próprio pensamento.

A filosofia de Quincas Borba afirma que a substância da qual emanam e para qual convergem todas as coisas se chama “Humanitas”. A inveja aqui desempenha o papel de ser um “nobre sentimento” de contemplação, nos outros, das qualidades de Humanitas.

O “Humanitismo”, enxerga a guerra como forma de seleção dos mais aptos — com isso podemos ver que essa ideia tem uma proximidade com a teoria da evolução de Darwin. Para entender melhor o que acabamos de dizer, devemos compreender que o Humanitas se projeta por meio de quatro fases: a estática, anterior à criação; a expansiva, início das coisas; a dispersiva, surgimento do homem, e a contrativa, absorção do homem na substância original. Percebemos que, assim como Clemente, Quincas apresenta sua tese com um orgulho desmedido, veja seus conceitos obscuros que, segundo ele, define a realidade.

A vida seria o maior benefício concedido pelo Humanitas, fazendo com que todo ser que nasça queira gozá-la tal qual seu genitor. A única coisa negativa seria para o Humanitas não nascer. A inveja nessa questão, por exemplo, é vista como um sentimento danoso pela maioria das religiões, mas no Humanitismo ela é apreciada como autêntica emanação dos Humanitas, já que os homens, por terem uma mesma origem, se invejam. Da mesma forma, os homens que atacam são Humanitas, pois a luta é uma de suas funções. No mais, essa filosofia é um louvor a uma espécie de natureza humana primitiva do ser humano.

A filosofia de Quincas Borba exclui o sexo e o sofrimento, além de considerar o Cristianismo uma “moral dos fracos” — vemos aqui uma clara intertextualidade às teorias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Aliás, devemos demonstrar o porquê dessas palavras de Quincas conterem, de fato, uma similaridade com a filosofia de Nietzsche, afinal, veja que o filósofo alemão diz em seu livro O Anticristo nos diz que o cristianismo “nada deixou intacto com seu corrompimento, ele fez de todo valor um desvalor, de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma baixeza de alma”. Nesse sentido, tanto a filosofia de Quincas Borba quanto as reflexões de Nietzsche sobre a moral cristã revelam uma crítica à fragilidade das emoções humanas e uma busca pela afirmação da vida, rejeitando a visão de que o sofrimento e a submissão são condições necessárias para a existência. Ambas as filosofias, apesar de suas diferenças contextuais, convergem na ideia de que a verdadeira força reside em transcender as limitações impostas por uma moral considerada “fraca”, propondo uma nova visão sobre o que significa viver plenamente.

Concluindo, portanto, essa apresentação: Quincas diz que a mulher é um ser inferior (parece que o personagem de Machado tem influência até mesmo na misoginia de Nietzsche), e tudo no mundo sendo como algo bom, sendo a única coisa ruim o “não nascer”. Enfim, apresentamos as principais teses do Humanitismo, agora trataremos de expor uma visão crítica do que há por trás do Humanitismo.

Os críticos notam que o “Humanitismo” de Machado não passa de uma sátira ao positivismo de Auguste Comte e ao cientificismo do século XIX e à teoria de Charles Darwin, isto é, a teoria da evolução ou seleção natural. Desta forma, a célebre frase de Quincas: “ao vencedor, as batatas”, seria uma paródia da ciência da época de Machado e sua divulgação, uma forma de desnudar ironicamente o caráter desumano e antiético da “lei do mais forte”.

A tese de Darwin, presente na célebre obra A Origem das Espécies, foi fundamental para constituir uma “cultura” no pensamento filosófico da modernidade do século XIX passando para a contemporaneidade do século XX, de pensadores como Spencer, Nietzsche, Marx, Engels e Freud. Basta vermos, por exemplo, nas palavras de Nietzsche um certo “saudosismo” — que muito me lembra Jean-Jacques Rousseau e seu mito do “bom selvagem”, mas que em Nietzsche sabemos claramente que esse selvagem não teria esse status moral de “moral” — a um estado de natureza que fora perdido, e esse discurso vem carregado de palavras que condenam a civilização por ter retirado a animalidade do ser humano; assim, Nietzsche pensou e deu sua contribuição a essa visão científica/antropológica da época.

Já o pai da psicanálise, Sigmund Freud, que foi muito influenciado pela filosofia de Nietzsche, tem o mesmo discurso em sua obra O Mal Estar da Civilização, porque, segundo ele, a civilização é responsável por reprimir e sufocar, não o “bom selvagem” de Rousseau, mas sim o “selvagem livre” de Nietzsche.

Cada um imagina esse “selvagem” ou melhor, esse “primeiro homem” de acordo com sua teoria. O filósofo e revolucionário Friedrich Engels, por exemplo, olhará para essa questão — de acordo, é claro, com a ideia de Darwin — e irá conceber sua teoria do “surgimento do homem”, com inspiração nas novas ideias científicas de sua época, em sua obra O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, de 1876. Engels nessa obra diz que: “Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano — que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição.”.

Aliás, pensando já em alguém muito posterior a esse contexto histórico, mas que de certo modo recupera essa problemática, quem realmente nota isso com precisão é o filósofo Jacques Derrida em sua conferência O Animal que Logo Sou. O filósofo faz uma crítica a ideia de que o ser humano buscou se distinguir dos animais (e também de Deus), mas a formação do Eu, ou do cogito, do ser humano foi um meio dele se ver como ser distinto, depois como ser superior. Percebe-se que a perspectiva de Derrida é uma crítica a um certo senso de superioridade do ser humano nas palavras de Engels, e esse senso de superioridade pode ser simplesmente uma consequência da ideia de evolução de Darwin.

Contudo, vemos que Darwin foi muito importante para constituir o imaginário da sociedade contemporânea. Seu pensamento fundamentou várias teses que variam entre elogios e críticas. Aqui apresentamos a importância da teoria até agora, no entanto, devemos mostrar também a perspectiva crítica a seu respeito. Assim, como nós sabemos muito bem, por exemplo, que a obra de Darwin abriu caminho para a existência do “darwinismo social” de Spencer, que culminou no racismo científico. Além disso, o darwinismo tomou conta da filosofia, isto é, proporcionando que o conhecimento gire em torno de um antropologismo e de um sociologismo, portanto, acabamos por reduzir a filosofia a uma matéria histórica ou de mera descrição do sujeito ao que dita os preceitos científicos que acabamos de citar; enfim, acabamos por aceitar uma tese positivista como base essencial.

Por fim, apresentamos Darwin aqui como um fundamento importante às teorias e discussões da sociedade contemporânea. Sua obra recebeu elogios e críticas; de nosso grande escritor, Machado de Assis, ele recebeu uma excelente sátira. O personagem Quincas Borba é a representação dessa teoria. Contudo, Machado entrou na discussão se destacando dos demais por esse fator: ser jocoso.

Conclusão

Assim chegamos ao fim de mais uma resenha. Agora nós nos encaminhamos ao final da obra de Machado de Assis. Por fim, só pedimos ao leitor que aguarde pelo desfecho dessa nossa experiência literária.

 

Autores:

Janilson Ferreira Fialho Filho (org)

Maria Eduarda Bento do Nascimento Silva

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