Como já dissemos na apresentação do grupo Confraria das Traças, isto é, de que iríamos destacar não apenas a leitura coletiva — e cabe dizer que a leitura coletiva atual é Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis —, mas também que nós daríamos espaço a leitura individual. Sendo assim, iremos neste texto destacar as primeiras impressões, críticas e reflexões de uma leitura individual de um membro da Confraria.
As impressões que vocês lerão mais adiante é de Matheus Kaiky, ele que é, não apenas membro da Confraria das Traças, mas também aluno de violão clássico da Escola de Música Genaldo Cunha Lins, o projeto criado pelo saudoso Wellington Farias. O livro que Matheus Kaiky está lendo é a Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, que é um grande clássico da ficção científica.
Cabe destacar que a edição que ele está lendo pertence a biblioteca de Wellington; mas porque destacamos isso? Ora, a biblioteca de Wellington, que é riquíssima em edições primorosas e com um catálogo bastante vasto, fica à disposição dos alunos e de quem se interessa por livros, afinal, a formação de leitores fazia parte das preocupações de Wellington.
Bom, como já dissemos anteriormente, aqui iremos apresentar as primeiras impressões de Matheus Kaiky e também um pouco do que eu pude conversar com ele sobre — e já adianto um tópico importante — a questão da bioética, assim construímos uma reflexão excelente sobre o livro. No entanto, quem quiser ler uma resenha completa e com outra perspectiva filosófica — um pouco distante da bioética — recomendo procurar aqui no site Dito e Feito, a minha resenha intitulada de “Reflexão sobre a moralidade científica em A Ilha do Dr. Moreau”. Nele eu apresento críticas e dúvidas sobre a crença positivista da ciência, sobre como fica a questão ética nela, mas o que a diferencia dessa resenha aqui é que lá eu discorro mais sobre argumentos essencialistas, além de apresentar uma comparação entre as criaturas do cientista com a história do Navio de Teseu.
Resumo da obra
Não pretendemos fazer de fato um resumo estendido e rico em detalhes da obra, queremos apenas apresentar o básico ao leitor de nosso texto. Portanto, o livro A ilha do Dr. Moreau conta a história de um homem que, após um acidente aéreo, é resgatado e levado para uma ilha onde um cientista cria, em suas experiências genéticas, seres mutantes.
Bom, cremos que isso é o suficiente, mas não pense que só porque conseguimos resumir esse livro em tão poucas linhas que ele seja bastante superficial. Não, caro leitor, não julgue um livro pelo resumo. Mais adiante, ou seja, logo após as impressões e algumas outras considerações, iremos ver o que Matheus nos apresenta sobre essa obra.
Impressões
As primeiras impressões de Matheus foram essas: “Eu estou achando o livro bastante interessante, porque relata uma situação que realmente pode ser um acontecimento real, não é algo que foge do normal. Mas, também não é algo que acontece sempre, parece uma história baseada em fatos reais, mas que não é real de fato”.
De fato, ficamos divididos entre a credibilidade e a incredulidade, afinal, parece tão distante o que as narrativas de ficção científica nos apresentam e, ao mesmo tempo, parece que é possível sim, principalmente quando olhamos para todo desenvolvimento científico, que já possa existir tudo o que contemplamos nessas obras. Foi a partir disso que nós entramos na questão da bioética.
Sobre a bioética: como uma obra de literatura nos desperta o senso crítico contra a crueldade feita aos animais
Não é possível falar de bioética sem falar em biopolítica, afinal, esse tipo de discussão só veio a ter relevância quando o filósofo francês Michel Foucault nos apresentou esse conceito em sua obra. Desse modo, a ideia fundamental do pensamento de Foucault, a biopolítica, é que a civilização ocidental passou da “sociedade do controle” para a “sociedade normativa”, ou seja, o controle de populações inteiras por meio da regulação normativa do corpo com técnicas como a gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, entre outras.
Contudo, a biopolítica carrega uma bioética, que tem como foco estabelecer mecanismos de controle que não mais incidirão sobre corpos individuais, mas sobre populações, estabelecendo censuras entre diferentes grupos sociais de acordo com o interesse político almejado.
Hoje, com o avanço da ciência, a manipulação da vida tornou-se uma realidade. A clonagem de seres vivos, as modificações genéticas e os transplantes, já são coisas que a população tem contato diretamente. Assim, temos que saber se isso está dentro de um limite ético. Deste modo, devemos ver o seguinte sobre o transplante de órgãos, por exemplo, quem pode fazê-lo? Qual a finalidade dele para além de salvar a vida do sujeito? Como o transplante deve se fazer, isto é, o que pode ser considerado uma transferência lícita ou um tráfico de órgãos? Será que o comércio de órgãos pode se tornar algo correto aos olhos da ética?
O que se passa na ilha do Dr. Moreau toca com precisão nesse ponto, assim vemos como a manipulação da vida corre risco sob a ideologia positivista. Afinal, o saber técnico da manipulação da vida não garante que seja algo usado para o “bem” das pessoas ou da sociedade. Aliás, cabe dizer que por muito tempo a filosofia e as demais áreas do saber nos fez pensar que a ética, isto é, os direitos e a segurança, é um artigo de luxo apenas dos seres humanos e não de outros seres animados, como os animais, por exemplo. Portanto, chegamos a essa questão: como fica o direito dos animais na ética?
Nós pensamos que a vida dos animais não tem importância, porque não são seres dotados de razão, assim como nós. Deste modo, tratamos eles como seres inferiores, onde podemos subjugá-los da maneira que bem entendermos, exemplo disso, é a visão utilitarista, onde o ser humano trata os animais como objetos de extração de recursos. Além do mais, dessa visão utilitarista pode vir a visão predatória que não sacia nenhum instinto de sobrevivência, mas o sadismo e a perversão do ser humano. Um exemplo perfeito sobre isso é a caça desmedida, essa que já fez vários animais entrarem em extinção seja pela sua pele para fazer produtos ou pela sua carne, mas como bem dissemos, também pela perversidade de matá-los e transformá-los em troféu.
Nossa vontade, na maioria das vezes, sempre prevaleceu perante a dos outros seres vivos, isso tudo porque pensamos, ou seja, porque somos dotados de razão. Então, se analisarmos bem tudo isso, podemos dizer que o ato de pensar não retirou o ser humano de sua menoridade, assim, a razão foi uma arma submissa à vontade.
Sobre a contradição das luzes: a razão emanou ao mundo a luz ou trevas do ser humano?
Os filósofos T. Adorno e M. Horkheimer nos apresentam, em sua obra “Dialética do Esclarecimento”, de 1947, as falhas do pensamento iluminista que, de maneira ingênua, confiaram a razão ao positivismo científico como sendo aquele que transformaria o ser humano em um ser superior.
No entanto, o saber técnico não retirou, como já dissemos, o ser humano de sua menoridade, isto é, não fez dele um ser emancipado, apenas deu a ele os cálculos necessários para melhorar a sua “crueldade civilizada” e sua dominação.
A razão foi “cultuada” como divindade secular, como arma destrutiva ao que é contrário ao reino da lógica e como ferramenta de controle social e natural. Por meio disso, o ser humano se auto proclamou senhor de si e da natureza, por considerar sua capacidade de pensar um privilégio muito exclusivo; sendo assim, o ser humano, que antes tinha medo dela, passou a subjugar ela com seu saber técnico e passou a oprimi-la — e é assim que se concretiza a frase de F. Bacon: Saber é Poder.
Na verdade, a razão como saber técnico, segundo os pensadores da escola de Frankfurt, não foi outra coisa a não ser um mero recurso dominado pela economia e pelo mercado. A razão positivista, portanto, foi o instrumento que o capitalismo usou para o seu poder de reificar o ser humano e a natureza como objetos de extração de lucro.
O filósofo M. Heidegger em seu texto “A questão da técnica”, de 1959, por sua vez, nos mostra que a expansão da técnica constitui uma dimensão onde a razão calculadora conduz o ser humano ao perigo do esquecimento do próprio ser.
Essa mobilização técnico-maquinadora na qual reside a essência da ciência moderna reduz o ser da natureza à categoria de “ente disponível” e lhe apresenta como peça utilizável num sistema organizado a partir de seus métodos e previsíveis resultados.
A tecnificação do mundo é a realização efetiva e ilusória da ideia de que o ser humano, a partir de seu desenvolvimento pessoal, pensa o ser das coisas, a partir de si, como algo dependente dele próprio e que a ele se reduz, é a partir disso que a natureza e os animais são subjugados por ele como algo inferior e utilizável.
Como um produto técnico, o mundo seria, no seu próprio ser, produto do homem. A ciência e a técnica determinam constitutivamente o “rosto do mundo”. É essa a falha do projeto iluminista.
Exemplos sobre a crueldade da razão positivista contra os seres humanos
A experimentação científica que se utiliza de seres humanos como se fossem cobaias de laboratórios, em nossa sociedade, é moralmente inadmissível. No entanto, para que se possa proteger ou promover a saúde da população, muitas vezes é moralmente necessário realizar experimentos controlados com seres humanos. Deste modo, a moral nesse tipo de situação mostra-se contraditória em si mesma, pois, como pode se testar produtos perigosos à vida com o intuito de que isto é para salvar vidas? Se tal experimento é para salvar vidas, ao mesmo tempo em que põe a vida de alguém em risco, cabe nos perguntarmos quem é — e aqui usaremos um conceito muito comum na filosofia de G. Agamben — o Homo Sacer dessa questão, ou seja, quem é a “vida escarificável” utilizada no experimento? Vejamos alguns exemplos que nos farão pensar em como a ciência "progride" por meio do racismo e do preconceito de classes.
O estudo sobre sífilis em Tuskegee: Esse estudo foi um experimento médico realizado pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos (SPS) na cidade de Tuskegee, no Alabama, entre 1932 e 1972. O experimento é o primeiro exemplo que trazemos aqui sobre a má conduta científica. Foram usados 600 homens afroamericanos sifilíticos (na verdade, eles foram infectados com sífilis) como cobaias em um experimento científico. Assim, foram 399 indivíduos infectados para observar a progressão natural da sífilis sem o uso de medicamentos e outros 201 que estavam saudáveis, que serviram como base de comparação em relação aos infectados. Muitos não sobreviveram ao experimento. Contudo, fica bastante evidente que a escolha dessas pessoas tem relação direta com o racismo.
Experimentos sobre Malária: Em torno de fevereiro de 1942 e abril de 1945, experimentos foram realizados em Dachau, a fim de investigar a imunização para o tratamento da malária. Detentos saudáveis foram infectados pelo mosquito ou por injeções de extratos de glândulas mucosas das fêmeas de mosquitos infectados. Depois de contraírem a doença, estas pessoas foram tratadas com várias drogas para testar sua relativa eficiência. Mais de 1.000 pessoas foram utilizadas nesses experimentos, e desses, mais da metade morreu como resultado.
Experimentos sobre gás mostarda: Diversas vezes entre setembro de 1939 e abril de 1945, experimentos foram conduzidos em Sachsenhausen, Natzweiler, e outros campos para investigar o tratamento mais eficaz das feridas causadas por gás mostarda. Judeus, ciganos, homossexuais e comunistas foram deliberadamente expostos ao gás mostarda e outros tipos de gases, o que causava graves queimaduras químicas. As vítimas feridas foram então testadas para encontrar o tratamento mais eficaz para as queimaduras de gás mostarda.
Os experimentos da Unidade 731: Ao longo das décadas de 1930 e 1940, o Exército Imperial Japonês realizou uma guerra biológica e testes médicos em civis, principalmente na China. Liderados pelo general Shiro Ishii, o principal médico da Unidade 731, o número de mortos desses experimentos brutais é desconhecido, mas até 200.000 podem ter morrido, estimou o historiador Sheldon H. Harris de acordo com um relatório do New York Times de 1995.
Estudos de doenças como armas biológicas: Numerosas doenças foram estudadas para determinar seu uso potencial na guerra. Entre elas estavam a peste bubônica, o antraz, a disenteria, a febre tifoide, e paratifoide e a cólera, de acordo com um estudo do Dr. Robert K. D. Peterson para a Universidade de Montana (EUA). Inúmeras atrocidades foram cometidas, incluindo a infecção de poços com cólera e febre tifóide e a disseminação de pulgas infestadas de peste bubônica nas cidades chinesas.
O Holocausto Brasileiro: O Holocausto Brasileiro é um nome atribuído a barbárie que ocorreu no hospital psiquiátrico Colônia, fundado na cidade de Barbacena, Minas Gerais, em 12 de outubro de 1903. As pessoas que eram internadas neste hospital eram alcoólatras, sifilíticos, prostitutas, homossexuais, epiléticos, mães solteiras, esposas substituídas por uma amante, inconformistas, ou seja, as “supostas escórias sociais” que as famílias ou a polícia enviavam em trens a esta cidade de Minas Gerais. Essas pessoas sofriam maus tratos, ficavam nus e eram forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou em celas. Cerca de 60.000 internos morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento nos anos noventa.
Exemplos sobre a crueldade da razão positivista contra os animais
Até agora mostramos os experimentos realizados com seres humanos, agora mostraremos que a crueldade em nome da ciência, do progresso, da segurança e da saúde, também acontecem com animais. Aliás, cabe dizer que o uso de animais como cobaias se dá também em nome da vaidade, visto que a indústria dos cosméticos submetem essas criaturas a sessões de testes — que mais parecem sessões de torturas — dos produtos de beleza.
Começaremos aqui a abordar os testes mais experimentais com os animais e logo depois passaremos a criticar a indústria dos cosméticos. Veremos os Drs. Moreau da vida real agora.
Acredite se quiser, mas já houve alguém que tentou colocar a cabeça de um cachorro no corpo de outro. O cientista americano Charles Guthrie queria, na verdade, ser a primeira pessoa a fazer um transplante de cabeça. Ele conseguiu fazer um experimento em 1908 com uma cabeça que até mostrou alguns reflexos, mas acabou morrendo em poucos minutos. Cabe dizer que em 1954, um cirurgião soviético chamado Vladimir Demikhov tentou replicar o experimento de Guthrie, ele anexou a cabeça e a parte superior de um corpo de um cachorro a outro. Os cães sobreviveram por alguns dias, mas acabaram morrendo devido à rejeição do transplante.
A vivissecção é a dissecação de animais ainda vivos para estudos e testes expõem essas criaturas a várias torturas, geralmente sem anestésicos. Milhões de animais são utilizados em pesquisas científicas muitas vezes ineficazes, obsoletas e cruéis. São animais que vivem em jaulas e gaiolas, sem ver a luz do sol, com medo, desesperados e constantemente em sofrimento. São animais gaseados, cortados, fincados, mutilados, eletrocutados, engordados, envenenados, etc.
Desde 1944 a indústria dos cosméticos usa um teste chamado “Draize”. Os produtos são aplicados diretamente nos olhos dos animais conscientes durante o período do teste que normalmente dura uma semana e os animais podem sofrer de dor extrema e mutilação e geralmente ocorre a cegueira.
Experimentos armamentistas: Os animais são submetidos a radiação de armas químicas e biológicas, assim como a descargas de armas tradicionais. São expostos, ainda, a gases e são baleados na cabeça, para estudo da velocidade dos mísseis.
Pesquisas dentárias: Os animais são forçados a manter uma dieta nociva com açúcares, e hábitos alimentares errôneos para, ao final, adquirirem cáries e terem gengivas descoladas e a arcada dentária removida.
Teste de colisão: Os animais são lançados contra paredes de concreto. Babuínos, fêmeas grávidas e outros animais são arrebentados e mortos nesta prática.
Cosméticos: Calcula-se que hoje morrem entre 70 e 100 milhões de animais em laboratórios no mundo inteiro, 30% deles para testes de cosméticos. Os animais mais usados são coelhos, ratos, porquinhos da índia, macacos e cães.
Para quem quer se aprofundar mais nessa crítica ao uso de animais como cobaias em testes de laboratório, recomendamos o site soama.org.br, nele tem um artigo excelente denunciando esse problema (Link: https://www.soama.org.br/experiencias-em-animais/).
Conclusão
Mais uma vez devemos dizer que essa obra de H. G. Wells é impressionante! Isso fica evidente apenas observando a discussão que fizemos no nosso texto. Obtivemos uma excelente discussão sobre bioética, sobre questões morais, sobre o papel da ciência na sociedade, sobre a racionalidade. Tudo isso graças a uma obra de ficção científica. Esse é o poder da literatura, o poder de despertar nosso senso crítico.
Autores:
Janilson Ferreira Fialho Filho
Matheus Kaiky Almeida de Sousa
Deixe seu comentário